sábado, 20 de abril de 2024

Ourense

 

Termas da Chavasqueira

Júlio Dinis descreve no primeiro conto dos Serões da Província o  início da Primavera nas aldeias do Minho. A natureza desponta do torpor do Inverno alegrando as viçosas veigas e os riachos que por elas correm rumorosos. O céu pleno de azul límpido acentua a alvura da rara nuvem branca que paira solitária sobre as aldeias. Flores de pétalas coloridas e  árvores de fruto estendem-se garridas nos canteiros e quintais. Ouve-se o melodioso canto matinal dos mil trinados da passarada no alvorecer da manhã.

As paletes naturalistas do século XIX tem semelhanças com a paisagem galega e portuguesa do norte do país.  Procurar aspetos comuns com  o presente é um exercício mental interessante, ele próprio uma viagem. Mais tarde  estas paisagens verdejantes estarão despidas e cobertas de espécies invasoras, descaracterizadas e feridas por lixeiras e pedreiras a céu aberto. Ameaçadas pelas alterações climáticas e por uma economia extrativista que não respeita os limites e o tempo do planeta. As veigas e os riachos, outrora límpidos, ficarão estéreis. Os retratos deliciosos descritos por Júlio Dinis serão irreconhecíveis, a memória do passado perder-se-á. Seremos espiritualmente mais pobres, vivendo rodeados de gadgets,  ruído, poluição e angústia.

As termas da Chavasqueira, na margem direita do rio Minho junto a  Ourense, estão delimitadas por fitas, os balneários e o edifício de apoio encerrados. Apesar disso, algumas pessoas enfiaram-se nas pequenas poças ao ar livre. Idosos molham os pés na água a 37 graus, despejam-na com um balde sobre o corpo. Indivíduos solitários leem na toalha estendida na areia da margem, mergulham no rio.

Jonatan fala Português fluentemente, o avô era  de Chaves.  Esteve no Algarve a semana passada e na viagem de regresso à Galiza visitou o irmão em Cantanhede.

Pancho é neto de Portuenses, tem quinta  no rio Caldo junto às termas de Lobios, “um pequeno paraíso” que uma amiga portuguesa de Matosinhos visita regularmente. Ela gosta de fazer caminhadas noturnas e deitar-se nas águas quentes ao ar livre sob o luar e as estrelas. Fala com orgulho da sua terra, faz questão de usar o Português por afinidade a Portugal e deferência aos visitantes lusos.

Outro galego com afinidades ao Porto é Carlos Taibo. Escreveu “Colapso”, e “Ibéria Esvaziada”, ensaios em que disserta sobre o colapso económico e social mundial eminente, apresenta  alternativas  aos impactos das alterações súbitas e dramáticas que estão prestes a acontecer, de forma a tornar as sociedades mais resilientes, nomeadamente na península ibérica, no segundo livro. O seu último ensaio, “O nosso Porto, um olhar a partir da Galiza”, homenagem sentimental à cidade que visita desde criança, aborda o passado e o presente, refere os problemas e desafios causados pela gentrificação e turistificação massiva   que, por esta via, num mundo em pré-colapso, tornará o Porto insustentável e incapaz de resistir a novas crises económicas.

A este propósito surgiu a notícia do encerramento da histórica Mercearia do Bolhão. O imóvel será alugado a uma loja com filiais em muitas cidades, tornando-se, estas, cada vez mais parecidas entre si, massificadas pelo consumo, disneylandias uniformizadas de turismo. As lojas genuínas, típicas e únicas desaparecem gradualmente.

Em Ourense há lojas fechadas nas ruas do centro, de vidros sujos,  montras poeirentas acumulando lixo e papeis. Espanha é, também, um país assimétrico.

  Adeus Mercearia do Bolhão 






sábado, 30 de março de 2024

Belmonte

 

Castelo de Belmonte

O rei D. Manuel I decretou em 1496 a expulsão dos judeus de Portugal ou a sua conversão ao catolicismo.

Os sefarditas fugiram para países mais tolerantes, outros converteram-se, tornando-se Cristãos Novos. Outros  ainda não aceitaram a conversão forçada, nem a fuga, continuaram a praticar o judaísmo com a conivência dos cristãos. Sem sinagogas,  objetos religiosos  que os denunciassem ou o cemitério onde pudessem enterrar os  mortos. 

Devido ao secretismo e isolamento da comunidade o  judaísmo adquiriu elementos próprios. O criptojudaísmo de Belmonte foi transmitido ao longo dos 500 anos seguintes pelas mulheres da comunidade,  acrescentando-lhe elementos  cristãos, nomes de santos nas orações, desfazendo - se por medo dos objetos de culto e usando a língua portuguesa nas orações. Distanciando - se das práticas originais. Em 1989 foi reconhecida a comunidade judaica de Belmonte. As práticas voltaram a aproximar-se da norma religiosa, os judeus reconstruíram a  sinagoga, tem o seu rabino e lote no cemitério cristão, retomaram a celebração do ritual totalmente em hebraico. 

Belmonte apresenta-se como terra de tolerância e de convivência entre judeus e cristãos.

Ouço cânticos em hebraico. Desço as escadas do hotel e observo o grupo de turistas israelitas numa sala, em oração, lendo o talmude, homens de kipa e mulheres reformadas. Som hipnótico, tranquilizante. Sala  pequena para o grupo de 20 pessoas. Duas senhoras israelitas sentadas na escadaria observam-me, contorno-as e com o olhar peço desculpa por estar a incomodar.

É Shabat, dia da purificação. Entre o pôr- do-sol de sexta-feira e o pôr-do-sol de sábado não tocarão em dinheiro, não usarão telemóvel. Abster-se-ão de ouvir música,  ver televisão, ligar  interruptores,  usar o elevador,  tocar em qualquer objeto eletrónico. Usarão apenas a escadaria que dá acesso ao piso superior, atravessando a porta com o aviso em Inglês:  Shabat Door. Abrirão o quarto rodando as chaves na fechadura,  propositadamente  colocada por baixo do leitor eletrónico do cartão.  Acenderão a  vela  de cera colocada à entrada. Tudo na  maior simplicidade.

A cozinheira israelita  que acompanha  o grupo  certifica que o que comem tem origem kosher. Deu instruções precisas  ao chef português, não judeu, nesse sentido. Não comem farinhas fermentadas, grãos partidos de arroz, legumes com manchas negras, carne de porco, mariscos, peixe sem escamas e barbatanas. 

O chef  já está habituado aos clientes judeus, conhece as receitas, sabe onde adquirir e como confecionar os alimentos  para cumprir os seus preceitos religiosos. 

O hotel teve uma quebra abrupta de clientela. Este é o primeiro grupo de israelitas  depois dos ataques do Hamas de 7 Outubro de 2023. 30% dos clientes eram israelitas, hoje são raros. Homens e mulheres  estão impedidos de sair do país devido à guerra. Podem ser chamados para o exército a qualquer momento. A guia conseguiu organizar a viagem inscrevendo pessoas  idosas  e com dupla nacionalidade, sendo   mais fácil a quem possui dupla nacionalidade obter autorização de saída.

O dono do hotel, o sr. Alípio, pertence a uma das 55 famílias  judaicas de Belmonte. Casou com uma cristã, um caso pouco habitual,  a comunidade  manteve-se fechada privilegiando os casamentos dentro dela. Os nãos judeus não podem entrar na sinagoga durante o Shabat.  Ele cumpre os seus rituais religiosos aos sábados, ela cumpre-os   aos domingos.  Revezam-se  no trabalho do hotel  ao fim de semana. 

Outra nacionalidade importante de visitantes é a Brasileira. Pedro Álvares Cabral nasceu em Belmonte, filho de Fernão Cabral, a quem foi concedido pelo rei D. Afonso V o título hereditário de alcaide-mor do castelo de Belmonte, em reconhecimento dos feitos valorosos da família nas lutas de defesa do território contra os exércitos leoneses e castelhanos.  O panteão dos Cabrais encontra-se na igreja românica de Santiago. 

Belmonte tem 5 museus a curta distância uns dos outros: o castelo, o museu do azeite, o ecomuseu do Zêzere, o museu das descobertas e o museu judaico. 

Sem os conhecer ainda é de enaltecer a existência de 5 espaços museológicos numa pequena vila de pouco mais de 3000 habitantes. Ao contrário de muitas localidades no interior de Portugal aqui sente-se algum dinamismo social, veem- se níveis  etários mais diversos e equilibrados, e não somente uma população envelhecida. O turismo judaico, a história rica em património, a ligação ao Brasil e aos descobrimentos, o belíssimo vale do rio Zêzere que percorre a fértil cova da beira, terra de pomares, a proximidade da serra da Estrela, são  motivos de sobra para visitar este concelho surpreendente, com muita história e natureza  para descobrir.



Rua da Judiaria




 
Pelourinho

Janela Manuelina do Castelo

Interior do Castelo

Painel de Santiago na igreja românica do mesmo nome



Torre de Centum Cellas (Séc. I DC). Foi uma Villa Romana e séculos mais tarde terá sido uma prisão com 100 celas,  daí o nome por que é conhecido este estranho monumento. 


A Lontra

Museu das descobertas

Estátua de Pedro Álvares Cabral


Túmulo de Pedro Álvares Cabral

Interior da igreja românica de Santiago

quarta-feira, 20 de março de 2024

Amsterdão - a liberdade de andar de bicicleta

 


No documentário “Uma cidade em dois ou três dias” Amsterdão é a cidade das bicicletas. Um estudioso refere que sempre foram populares. Nos anos setenta houve um aumento do trânsito automóvel,  muitas crianças atropeladas, tornou-se perigoso pedalar. A população saiu à  rua a protestar, exigindo mais segurança e ciclovias. O processo foi revertido. Amsterdão tem atualmente 700 km de ciclovias, sem contar com as estradas do centro histórico. Pretende-se que em 2030 se torne completamente livre de automóveis.

O entrevistado diz que “Andar de bicicleta muda a forma como vivemos”, “A bicicleta é um verdadeiro símbolo de liberdade”. Ao contrário das compras nas grandes superfícies em que se compra para uma ou mais semanas, enchendo o automóvel, com a bicicleta vai-se à pequena mercearia comprar o pão do dia, os legumes, a fruta, colocando apenas  o que cabe no cesto do guiador. As pessoas adquirem  a rotina de pedalar  diariamente, tudo se torna mais próximo e acessível. A vida mais tranquila e saudável.

O quão longe estamos em Portugal desse paradigma. Pelo contrário, a tendência é para o aumento da utilização do automóvel nas cidades e periferias. Não são necessários estudos para constatar o óbvio. Basta sair de casa e fica-se  rodeado de automóveis, de estradas sem segurança para andar a pé ou de bicicleta. É desconfortável  pedalar e caminhar.

Que inveja e que saudades tenho dessa liberdade.












domingo, 17 de março de 2024

Lisboa (pelo Martim Moniz, Alfama e Bairro Alto)

 

Beco de Santa Quitéria

Na rua do Bemformoso o ambiente muda completamente. De repente, estou numa rua asiática, tal é a quantidade de homens  indostânicos que circulam atarefados.    Alguns turistas  distinguem-se pela tez mais clara e a roupa desportiva. Veem-se poucas mulheres. 

Será por se sentirem inseguras? 

A  única aglomeração de mulheres que veremos será  no fim da rua,  à entrada da pensão. Prostitutas portuguesas, brancas, decadentes, de dentes caídos e cara engelhada do consumo de heroína. 

O Ramadão começou este fim de semana, provavelmente o rebuliço estará relacionado com o início do jejum. Dentro dos restaurantes e dos talhos preparam-se estranhas iguarias, mistura de carnes e de legumes enfiados em sacos de plástico. Um senhor transporta uma enorme panela arrastando-a pela rua, lá dentro uma massa castanha que parece carne moída. Convidam-nos a entrar. Recusamos amavelmente. 

Africanos, mulheres de sari, paquistaneses. Magrebinos que se  distinguem pela boina rendada, as jelabas compridas e largas e as  sandálias de couro. 

Na entrada do talho, halal, pendurado por cima da porta, um reclame envidraçado de Imran Khan, ex-primeiro ministro paquistanês, preso por corrupção. Mais barbearias, mercearias e agências de viagem, cheias de gente.

Descendo a rua vê-se um mar de cabeças e de corpos escuros. É,  realmente, outra Lisboa: a mais cosmopolita do país na freguesia com maior número de  nacionalidades  – Arroios.

Metido numa reentrância da rua, de cócoras encostado ao muro, um fulano  branco,  com ar de  português, queima heroína numa folha de prata. Ao lado, uma mulher escura de aspeto indiano e de toxicodependente, prepara-se para se injetar. O talhante em frente fatia a carne para os clientes, indiferentes ao consumo.

O rés-do-chão do centro comercial do Martim Moniz cheira a especiarias. Os corredores atafulhados  de bugigangas sem o cuidado estético  e a  organização das grandes superfícies comerciais frequentadas pela classe média portuguesa.   Amontoam-se malas, cabedais e cintos nas entradas das lojas. As mercearias são exíguas. Um Sikh gordo e enorme demora-se a olhar para os sacos de caril, comparando preços, obrigando os restantes clientes a dar a volta pelo outro lado. A fila  aperta-se junto à caixa registadora. Vendem-se artigos indostânicos, chineses, africanos e magrebinos procurados pelos clientes  das mesmas regiões.

A comunidade africana é a mais numerosa no largo do Martim Moniz, dispersa-se sentada nos bancos, deambulando pelos passeios, regateando entre si relógios, couros, bugigangas que alguns expõem nos lençóis colocados no chão. Uma tenda está montada num dos canteiros, outras aparecerão enfiadas nas esquinas. O número de toxicodependentes e de sem-abrigo cresceu  bastante nos últimos meses. Veremos mais tendas  debaixo da pala, na parte alta da saída da estação do Rossio, formando um miniacampamento  repleto dos plásticos que as protegem e  de colchões piolhentos.

Deambulamos pelo Bairro Alto e o Príncipe Real, por  uma Lisboa mais elegante e fina. De prédios de luxo vendidos a franceses, magnatas brasileiros e ao jet-set internacional. Gostam da tranquilidade, do sol, das pessoas e da comida. Passam uma parte do ano na cidade, a outra viajando, vivendo dos rendimentos chorudos dos negócios imobiliários, amealhando fortunas ligadas aos domínios da internet e  às novas tecnologias. 

Lisboa encanta.  Sente-se que os turistas andam felizes e surpreendidos pelo exotismo da cidade, pelas camadas de história sobrepostas, pela anarquia dos monumentos, estilos arquitetónicos e épocas, pelas colinas onduladas e os miradouros alcantilados com vistas soberbas sobre bairros airosos e multicoloridos.

O Cheirinho a sardinha assada emana das ruelas e becos de Alfama – só mesmo  turistas incautos  e ignorantes dos hábitos gastronómicos portugueses pedem  sardinhas assadas, em março!? - Uma pastelaria junto às Portas do Sol vende pasteis de nata recheados com Nutella! Como é possível!?

Subindo e descendo escadarias e encostas, sentindo Lisboa, absorvendo os seus encantos e mistérios. A sua história. Em boa companhia, falando, comentando, discutindo os problemas da cidade e do país. 

"Podíamos ser tão ricos, não fosse esta classe de políticos corruptos e incompetentes." 

"Somos um país tão bonito. Temos tanta história!"

"Lisboa está na moda."

Lisboa tem muito que ver. Não para de surpreender.

Apanhamos o elétrico 28 rumo à Basílica da Estrela. Temos sorte porque não vai apinhado: 2,5 € o preço do bilhete. A guarda-freios procura pacientemente o troco na caixa registadora, enquanto os próximos  passageiros aguardam  na rua  que a entrada fique desimpedida. 

É sempre bom voltar Lisboa.

Rua de São Bento

Rua da Rosa






Miradouro do Torel

Painel de azulejos na fábrica da Viúva Lamego, Intendente






Campo de Santa Clara

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Noite do Porto

 

Cartazes na parede do Pipa Velha

O Pontual, na rua do Almada, tinha apenas dois funcionários: o careca que costuma estar atrás do balcão a fazer  omeletes e outro empregado a servir  às mesas. Os clientes há mais tempo no restaurante aguardavam ainda serem atendidos. Estava demorado. Estivemos cinco minutos com a mesa vazia, sem ver o menu ou ter a oportunidade de pedir entradas. Saímos. Ali perto, talvez o Antunes, na rua do Bonjardim. Sentia-se a vibração de início da noite na baixa do Porto,  filas na entrada dos  restaurantes, malta nova e turistas circulando a pé.

Um grupo numeroso de pessoas  aguardava lugar no Antunes. Os restaurantes mais tradicionais e antigos tornaram-se referências nos guias turísticos,  Tripadvisor e afins. Very tipical, delicious portuguese food, etc. Não se arranja lugar com a mesma facilidade de outrora. Os Portuenses, lentamente, vão sendo excluídos do melhor que a sua cidade tem para oferecer. Talvez o Buraco, na rua do Bolhão. Come-se bem como no Antunes, tem comida tradicional e não é caro. Havia lugar. Fomos para a sala ao fundo, à nossa volta mais turistas. Até este “buraco” já foi descoberto por eles. O interior é algo claustrofóbico e exíguo,   compensado, no entanto,  pela simpatia,  boa-mesa, comida despretensiosa, simples e saborosa, à moda antiga.

Pedimos Bacalhau à Buraco (o mesmo que Bacalhau à Braga ou Espiritual) e uma garrafa de Muralhas de Monção, branco. Entradas de pão, manteiga, queijo  e azeitonas. Os turistas Ingleses na mesa ao lado pediram um pratinho de bolinhos de bacalhau, de entrada. Comemos bolo de bolacha na sobremesa.

Fomos ao Pipa Velha beber o digestivo: aguardente CRF e gin tónico. Ambiente  intimista e tranquilo para beber um copo e conversar sossegadamente. A mesma decoração e tipo de clientela que conheci. Os cartazes de há  trinta anos continuam afixados na parede  com outros mais recentes, peças de teatro de companhias experimentais:  As boas raparigas vão para o céu as más vão para todo o lado,  TEAR,  TUP. Fiquei saudosista da   atmosfera teatral dessa época e das memórias que os cartazes trouxeram, dos espetáculos e dos seus atores. Falamos com o Eurico, lembra-se de nós. Não nos via há algum tempo: “não fazia ideia que era assim há tanto tempo”, disse admirado. É agradável continuar a ser reconhecido, ser cumprimentado pelo dono do bar, ter uma conversa amável com ele.

No caminho até ao Piolho passamos na Praça Carlos Alberto,  ao lado do  que foi o antigo Café Luso, agora um estabelecimento sem personalidade, de luzes vermelhas fluorescentes, sombrio, de mobília  angulosa, pós-moderna e kitsch, para enganar turistas, sem nada a ver com o Luso que ali existiu. Era o ponto de encontro da fauna mais diversa  da noite do Porto, nele  convergiam  atores, estudantes, académicos,  indigentes a pedir esmola, poetas que vendiam poemas escritos na hora no guardanapo de papel, gente de todas as condições e feitios, sítio democrático e livre. Buliçoso e luminoso. Sem preconceitos.   Servia os finos mais frescos e borbulhantes da cidade até às duas da manhã. 

O Piolho continua igual, resistindo às transformações e ao desaparecimento de cafés emblemáticos da cidade.

O Sr. Edgar estava no escritório “a tratar de uns assuntos”, interrompeu o trabalho para  falar connosco. O café Âncora D`Ouro foi oficialmente estabelecido em 1909 pela família Reis Lima, tornou-se local de tertúlias, frequentado por gente da política e estudantes universitários, que passavam horas a estudar e a conviver. Momentos recordados nas lápides colocadas nas paredes.

Não conhece a origem da alcunha “Piolho”. Há várias hipóteses.  A sua favorita diz que devido à distribuição das mesas, em filas compridas, de espaldares quase encostados, estabelecia-se contacto visual com qualquer ponto do restaurante. Coçar a cabeça seria o código secreto para ter cuidado com o que se dizia na presença de pessoas suspeitas. Outra teoria, menos prosaica, é explicada pela proximidade permanente das cabeças, facilitando o contágio de piolhos.  

Depois do vinte e cinco de Abril de 1974 a família Reis Lima passou a gerência a uma  sociedade de Marco de Canaveses. A nova gerência não conseguiu conciliar o momento político do país com a gestão do café. Haviam tensões entre diferentes fações e ideologias, exaltações pessoais que se exacerbavam nas mesas, influenciadas pelo álcool, pela incerteza do momento revolucionário em curso. A gerência proibiu estudar no interior  do café. Os tempos não estavam fáceis.  O sr.  Edgar começou a trabalhar nessa altura, nos finais da década de 70, com menos de dezoito anos. Assumiu a gerência com mais dois sócios, já falecidos. Não tinha experiência, foi aprendendo com os empregados mais antigos. Fez alguns disparates  - mandou retirar e vender a escadaria de prata que ligava ao piso superior. Está feliz com o sucesso do café,  manteve-o fiel à origem, fazendo poucas alterações na decoração. As cadeiras e as mesas continuam as mesmas de sempre, restauradas. Tal como o balcão, o soalho e os espelhos nas paredes.  As casas de banho são novas: “antigamente havia umas cortinas nas casas de banho das senhoras, os mais malandros colocavam-se nas mesas próximas a espreitá-las”.  Teve de se adaptar ao pós 25 de abril. As praxes, conotadas com a ditadura, foram proibidas. O restaurante perdeu  espírito, carisma e tradição. Em 1983 as praxes voltaram a ser permitidas,  os estudantes  a frequentar o café como antes. Mostrou-nos a sua placa favorita: a dedicatória de um estudante tímido, apaixonado por uma miúda a quem não se conseguia declarar: “Vai lá, ganha coragem, não tens nada a perder, senta-te ao pé dela, fala com ela”, dizia-lhe  ele. Assim foi. Os dois estudantes começaram a namorar e casaram. Ele era do Funchal, ela de Florença, Itália, conheceram-se no Porto, no café Piolho. A Placa tem o nome das três cidades e o ano de 2014.

Pipa Velha

Cadeira do "Piolho"




Interior do "Piolho"